quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Nunca fui como todos
Nunca tive muitos amigos
Nunca fui favorita
Nunca fui o que meus pais queriam
Nunca tive alguém que amasse
Mas tive somente a mim
A minha absoluta verdade
Meu verdadeiro pensamento
O meu conforto nas horas de sofrimento
não vivo sozinha porque gosto
e sim porque aprendi a ser só...

Florbela Espanca

    Conta a lenda que dormia
    Uma Princesa encantada
    A quem só despertaria
    Um Infante, que viria
    De além do muro da estrada.

    Ele tinha que, tentado,
    Vencer o mal e o bem,
    Antes que, já libertado,
    Deixasse o caminho errado
    Por o que à Princesa vem.

    A Princesa Adormecida,
    Se espera, dormindo espera,
    Sonha em morte a sua vida,
    E orna-lhe a fronte esquecida,
    Verde, uma grinalda de hera.

    Longe o Infante, esforçado,
    Sem saber que intuito tem,
    Rompe o caminho fadado,
    Ele dela é ignorado,
    Ela para ele é ninguém.

    Mas cada um cumpre o Destino
    Ela dormindo encantada,
    Ele buscando-a sem tino
    Pelo processo divino
    Que faz existir a estrada.

    E, se bem que seja obscuro
    Tudo pela estrada fora,
    E falso, ele vem seguro,
    E vencendo estrada e muro,
    Chega onde em sono ela mora,

    E, inda tonto do que houvera,
    À cabeça, em maresia,
    Ergue a mão, e encontra hera,
    E vê que ele mesmo era
    A Princesa que dormia.

    Fernando Pessoa
Pirata

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner

Canção Mínima_Cecília Meireles

No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;

no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.

Mistério


Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas…

Talvez um dia entenda o teu mistério…
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!


Sonhos


Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir...
Que se sonhasse a chorar...

Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que a sonhar beijasse doce
A nossa boca... um lamento...

Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho;
E depois ver vir a morte

Despedaçar esses laços!...
...É pior que ter um filho
Que nos morresse nos braços!

Motivo_Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

- não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

- mais nada.

Ou Isto Ou Aquilo_Cecília Meireles

Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . .
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

POEMA

Ó sino de minha aldeia,

Dolente na tarde calma,

Cada tua badalada

Soa dentro de minha alma.

E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.

Por mais que tanjas perto,

Quando passo sempre errante,

És para mim como um sonho,

Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto saudade de perto.

Coisa Amar

Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

Manuel Alegre

Fundo do mar, Sophia de Mello Breyner Andresen

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Sonhos da Menina_Cecília Meireles

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho
risonho:

O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .

Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

As Fadas


"As fadas... eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar...
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar...

Algumas em fonte fria
Escondem-se, enquanto é dia,
Saem só ao escurecer...
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder...

O vestir... são tais riquezas,
Que rainhas, nem princesas
Nenhuma assim se vestiu!
Porque as riquezas das fadas
São sabidas, celebradas
Por toda a gente que as viu...

Quando a noite é clara e amena
E a lua vai mais serena,
Qualquer as pode espreitar,
Fazendo roda, ocupadas
Em dobrar suas meadas
De ouro e de prata, ao luar.

O luar é os seus amores!
Sentadinhas entre as flores
Horas se ficam sem fim,
Cantando suas cantigas,
Fiando suas estrigas,
Em roca de oiro e marfim.

Eu sei o nome de algumas:
Viviana ama as espumas
Das ondas nos areais,
Vive junto ao mar, sozinha,
Mas costuma ser madrinha
Nos baptizados reais.

Morgana é muito enganosa;
Às vezes, moça e formosa,
E outras, velha, a rir, a rir...
Ora festiva, ora grave,
E voa como uma ave,
Se a gente lhe quer bulir.

Que direi de Melusina?
De Titânia, a pequenina,
Que dorme sobre um jasmim?
De cem outras cuja glória
Enche as páginas da história
Dos reinos de el-rei de Merlin?

Umas têm mando nos ares;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquela vara famosa,
A vara maravilhosa
A varinha de condão!

O que elas querem, num pronto,
Fez-se ali! Parece um conto...
Mesmo de fadas... eu sei!
São condões que dão à gente,
Ou dinheiro reluzente
Ou jóias, que nem um rei!

A mais pobre criancinha
Se quis ser sua madrinha,
Uma fada... ai, que feliz!
São palácios, num momento...
Beleza, que é um portento...
Riqueza, que nem se diz...

Ou então, prendas, talento,
Ciência, discernimento,
Graças, chiste, descrição...
Vê-se o pobre inocentinho
Feito um sábio, um adivinho,
Que aos mais sábios vai à mão!




Mas com tudo isto, as fadas
São muito desconfiadas;
Quem as vê não há-de rir,
Querem elas que as respeitem,
E não gostam que as espreitem,
Nem se lhes há-de mentir.

Quem as ofende...cautela!
A mais risonha, a mais bela,
Torna-se logo tão má,
Tão cruel, tão vingativa!
É inimiga agressiva,
É serpente que ali está!

E têm vinganças terríveis!
Semeiam coisas horríveis,
Que nascem logo do chão...
Línguas de fogo, que estalam!
Sapos com asas, que falam!
Um anão preto! Um dragão!

Ou deitam sortes na gente...
O nariz faz-se serpente,
A dar pulos, a crescer...
É-se morcego ou veado...
E anda-se assim encantado,
Enquanto a fada quiser!

Por isso, quem por estradas
For, de noite, e vir as fadas
Nos altos mirando o céu,
Deve com jeito falar-lhes
Muito cortês e tirar-lhes
Até ao chão o chapéu.

Porque a fortuna da gente
Está às vezes somente
Numa palavra que se diz;
Por uma palavra, engraça
Uma fada com quem passa;
E torna-o logo feliz.

Quantas vezes, já deitado,
Mas sem sono, inda acordado,
Me ponho a considerar,
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um belo dia,
Me quisesse a mim fadar...

O que seria? Um tesoiro?
Um reino? Um vestido de oiro?
Ou um leito de marfim?
Ou um palácio encantado,
Com o seu lago prateado
E com pavões no jardim?

Ou podia, se eu quisesse,
Pedir também que me desse
Um condão, para falar
A língua dos passarinhos,
Que conversam nos seus ninhos.
Ou então, saber voar!

Oh, se esta noite, sonhando,
Alguma fada, engraçando
Comigo (podia ser!)
Me tocasse com a varinha,
E fosse minha madrinha,
Mesmo a dormir, sem a ver...

E que amanhã acordasse
E me achasse... eu sei? me achasse
Feito um príncipe, um emir!...
Até já, imaginando,
Se estão meus olhos fechando...
Deixa-me já, já dormir!”

Antero de Quental

O Mosquito Escreve_Cecília Meireles

O mosquito pernilongo
trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.

O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,
faz um Q,
faz um U, e faz um I.

Este mosquito
esquisito
cruza as patas, faz um T.
E aí,
se arredonda e faz outro O,
mais bonito.

Oh!
Já não é analfabeto,
esse insecto,
pois sabe escrever seu nome.

Mas depois vai procurar
alguém que possa picar,
pois escrever cansa,
não é, criança?

E ele está com muita fome.

Leilão de Jardim_Cecília Meireles

Quem me compra um jardim
com flores?

borboletas de muitas
cores,

lavadeiras e passarinhos,

ovos verdes e azuis
nos ninhos?

Quem me compra este caracol?

Quem me compra um raio
de sol?

Um lagarto entre o muro
e a hera,

uma estátua da Primavera?

Quem me compra este formigueiro?

E este sapo, que é jardineiro?

E a cigarra e a sua
canção?

E o grilinho dentro
do chão?

Este é meu leilão!

Fernando Pessoa

Quando as crianças brincam
E eu as ouço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no meu coração.

Colar de Carolina_Cecília Meireles

Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.

O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.

E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral

nas colunas da colina.