I - Ave-Marias
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício,o Tejo, a maresia
Despertam um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas,
Saltam de viga e viga os mestres carpinteiro.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, seco;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baxéis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não varei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escalares;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
Excerto de "O Sentimento Dum Ocidental" de Cesário Verde em (1855-1886)
terça-feira, 23 de março de 2010
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