terça-feira, 23 de março de 2010

O Sentimento Dum Ocidental (excerto)

I - Ave-Marias

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício,o Tejo, a maresia
Despertam um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas,
Saltam de viga e viga os mestres carpinteiro.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, seco;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baxéis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não varei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escalares;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.


Excerto de "O Sentimento Dum Ocidental" de Cesário Verde em (1855-1886)

Sem comentários: